segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Lições dos países ricos (e do Bill Gates) sobre o imposto de herança/doação

 

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, historicamente o imposto sobre herança/doação foi ativamente defendido por filósofos, economistas e políticos de orientação liberal, como Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Thomas Jefferson. No mesmo sentido, sua implementação se deu de forma espantosamente mais acentuada após as duas grandes guerras mundiais e em países em que predominava o liberalismo, como EUA, Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália.

 

Por exemplo, no ano de 1965, a alíquota superior do imposto sobre heranças em linha direta era de 77% nos EUA e 80% no Reino Unido e apenas de 2% no Brasil. No caso do Reino Unido, esse percentual chegou a aumentar ainda mais no início dos anos 70, quando atingiu 85%. E em 1972, o candidato democrata George McGovern, chegou a propor uma taxa superior de 100% para as heranças mais elevadas.


Todavia, a partir do final dos anos 80, o imposto que até então era reconhecido como necessário para garantir igualdade de oportunidades e o aspecto meritório do capitalismo passou a ser questionado na maioria dos países ricos. Os principais argumentos levantados iam no sentido recorrente de dizer que os impostos desencorajam os agentes econômicos a trabalharem, pouparem e empreenderem.


Entretanto, as evidências atuais sugerem não haver relação comprovada entre produtividade e tamanho das alíquotas aplicadas (pelo menos nos níveis existentes até hoje), sendo ainda mais incerta no que tange à tributação sobre heranças. A própria história do capitalismo parece corroborar esse argumento, pois entre 1950 e 1973, quando ocorreu o período mais próspero do capitalismo, também estiveram vigentes as maiores tributações sobre renda e patrimônio.



Ademais, também existem boas evidências de que grandes heranças legadas a herdeiros aumentam a probabilidade de que estes deixem de trabalhar ou trabalhem menos. Essa, inclusive, tem sido a preocupação de alguns multimilionários, como Warrent Buffet e Bill Gates, os quais alegam que irão deixar a seus herdeiros apenas uma pequena fração de suas fortunas, deixando o resto a fundos de caridade. Aliás, conforme Piketty (2014), a própria disposição em exercer esse “altruísmo” parece guardar relação com a tributação. O autor observa que esses fundos são bem mais relevantes em países com histórico de imposto sobre herança elevado, como nos EUA. 


Por fim, o belo trabalho de Mazzucato (2014) demonstra ser o estado quem reúne as melhores condições para trazer dinamismo e inovação à economia, o que, por sua vez, demanda contrapartidas dos agentes privados, até para se garantir a sustentabilidade futura da cooperação estado/iniciativa privada. Ninguém menos do que Bill Gates também defende essa premissa:


A razão pela qual o imposto sobre herança faz tanto sentido é que existe uma relação direta entre o patrimônio líquido que as pessoas têm quando falecem com onde moram. O governo que protege suas atividades comerciais, as tradições que lhes permitem confiar em certas coisas acontecendo, é o que cria capital e permite que o patrimônio líquido aumente. O ingrediente mais significativo de todos é o investimento do governo federal em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Cerca de 30% do crescimento do nosso produto nacional bruto a cada ano é uma função da nova tecnologia; isso é em grande parte onde a riqueza é criada. O aumento no patrimônio pessoal é em grande parte derivado de ideias para novas tecnologias do governo federal, as quais criam riqueza. […]. O fato é que o imposto sobre herança é coletado em conexão com a passagem da riqueza de uma geração para outra. [...]. É um imposto inteiramente apropriado, que eu descreveria como uma fatura devida para aqueles que tiveram a oportunidade de desfrutar de tal generosidade (GATES, 2006).


Vale registrar, que mesmo com os reveses da era neoliberal, entre os países que mantiveram este tipo de imposto, sua arrecadação continua muito maior do que no Brasil e com a aplicação de alíquotas em patamares sempre maiores do que 30%, enquanto no Brasil, o limite máximo é de 8%. A arrecadação também costuma ser de duas a três vezes mais elevada, o que prova que o Brasil ainda tem muito que aprender com os países mais ricos, talvez, ouvindo menos o que falam e fazendo mais o que fazem/fizeram.



Referências Bibliográficas:



GATES, Bill. Trechos retirados de uma conferência para o Center on Budget and Policy Priorities (CBPP) em 1º junho de 2006. Disponível online em: <http://www.cbpp.org/6-1-06tax-transcript.pdf>.

MAZZUCATO, Mariana. O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.

PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.