Na
maioria dos indicadores de bem-estar a renda tem papel proeminente e,
no senso comum, o dinheiro aparece como a panaceia para todos os
problemas. Para elucidar a discussão vale resgatar as teorias que de
alguma forma deram maior sustentação filosófica a este
entendimento e tecer algumas pertinentes perguntas sobre o consumo:
Seria a quantidade consumida proporcional ao bem-estar psicológico?
Quanto mais rica uma pessoa, mais feliz ela é? Quem ganha um milhão
de reais ao ano é 10 vezes mais feliz que outra pessoa que ganha 100
mil?
Ainda
que muitas dessas perguntas (e algumas respostas) já tenham sido
objeto de reflexão filosófica ao longo do tempo, uma contribuição
inicial mais sistematizada e que ganha status de doutrina e movimento
político e social é a desenvolvida e consolidada por Jerehmy
Bentham (1748-1832). Ele é considerado o principal formulador do
utilitarismo clássico e os princípios por ele desenvolvidos
subsidiaram acalorados debates e modos de condutas conscientes ou
inconscientes da sociedade.
A
sua teoria, resumidamente, diz que a ética e a moral estariam
subordinadas ao mais importante dos princípios, por ele definido,
como o fato de todo o homem procurar o prazer e evitar a dor. Assim,
todas as nossas decisões passariam pela tentativa de maximizar o
prazer e diminuir a dor. Portanto, não haveria uma moral natural, ou
um direito natural, a lei seria apenas uma garantia para que as
pessoas possam buscar a utilidade. Mesmo o altruísta se encaixa
neste princípio, já que sua dedicação ao próximo e entrega lhe
proporcionam prazer, seja pela satisfação do gesto, seja por ser
admirado por outras pessoas e assim se sentir melhor (vaidade, fama,
reconhecimento, etc..). A definição dele da moral esclarece bem a
centralidade de sua ideia:
"A
natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores
soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que
devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao
trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma
que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia
de causas e efeitos."
"Os
dois senhores de que falamos nos governam em tudo o que fazemos, em
tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer
tentativa que façamos para sacudir este senhorio outra coisa não
faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo. Através das suas palavras,
o homem pode pretender abjurar tal domínio, porém na realidade
permanecerá sujeito a ele em todos os momentos da sua vida.
"(BENTHAM, 1979, p.3)
Portanto,
vê-se que Bentham acreditava num utilitarismo universal, com
respostas definitivas, válidas para todos os sujeitos. Observa-se
que ele era um adepto da ciência reveladora, mostrando que trazia
consigo muito dos valores iluministas. Nesse sentido, propunha uma
espécie de “utilitômetro”, a fim de medir a quantidade de
bem-estar proporcionada por cada coisa. Ele chegou a considerar o
dinheiro como uma unidade de medida deste “utilitômetro”,
podendo, assim, comparar e medir a utilidade de cada pessoa. Contudo,
já constatava dificuldades neste tipo de medida como, por exemplo,
quantificar o valor de uma surra, e assim não chegou a prescrever
definitivamente este referencial. De toda forma, a capacidade de
medir a utilidade se mostra essencial para o seu sistema e, nesta
perspectiva, desenvolverá diversos parâmetros para medir o grau de
utilidade das ações humanas. Assim, as pessoas e principalmente o
governo deveriam sempre calcular maneiras de maximizar a utilidade da
sociedade
Por
sua vez, do lado do consumo, o utilitarismo também lida com alguns
problemas e críticas, alguns dos quais já eram previstos pelo
próprio Bentham. Ele já identificava o princípio de utilidade
marginal decrescente. Basicamente, todo ser ao consumir algo, como,
por exemplo, um delicioso sorvete, irá ter uma satisfação maior no
primeiro objeto de consumo, e em seguida, cada acréscimo de um novo
sorvete irá proporcionar um acréscimo de bem-estar
proporcionalmente menor. A mesma coisa funcionaria com a renda, em
que um acréscimo patrimonial renderia uma quantidade de prazer e
bem-estar maior, contudo os acréscimos seguintes (em mesma
quantidade) renderiam um prazer menor.
Esta
regra era para Bentham um argumento inquestionável para realizar a
redistribuição de renda. Pois, um decréscimo do patrimônio do
rico representaria uma perda muito pequena de bem-estar para ele,
enquanto para o pobre, o acréscimo patrimonial seria um considerável
ganho.
O
importante é notar que o princípio da utilidade marginal
decrescente, implica que as pessoas com mais renda ou dinheiro
continuam com um bem-estar ou prazer maiores que os “debaixo”,
contudo, este prazer já não é mais proporcional. Assim, em relação
à pergunta formulada anteriormente, a respeito da proporcionalidade
de felicidade, vemos que, por este princípio, quem ganha um milhão
não é dez vezes mais feliz do que quem ganha 100 mil, a sua
felicidade talvez seja apenas um pouco maior.
Contudo,
algumas teorias colocam que certos comportamentos associados à
riqueza podem levar a uma perda ainda maior de bem-estar. São
diversos elementos que podem contribuir para um decréscimo do
bem-estar, advindos com o acúmulo material das sociedades
contemporâneas. Eles podem ser morais, como propriamente econômicos
e psicológicos.
Por
exemplo, já no século XVI, Montaigne abordava algumas dessas
questões, afirmando que a abundância se torna tediosa e que todo
homem teria um ponto de saciação. Querer ultrapassar este ponto ou
não dar tempo de ele se manifestar teria o efeito contrário sobre o
prazer, retirando todo o bem-estar que se procurava.
"Julgamos
que os meninos de coro têm grande prazer com a música? A saciedade
torna-a antes tediosa. Os festins, as danças, as mascaradas, os
torneios alegram os que não os veem amiúde e que desejaram vê-los;
mas para quem o faz habitualmente seu gosto se torna insípido e
desagradável (...). Não há nada tão incômodo, tão enjoativo
quanto a abundância. Que apetite não se repugnaria ao ver trezentas
mulheres à sua mercê, como as que têm o grande senhor em seu
serralho? E que prazer e que espécie de caçada buscara aquele
ancestral seu que nunca ia para os campos com menos de sete mil
falcoeiros?" (MONTAIGNE, 2002, p.392)
Na
sociologia, Durkheim já em 1897 constatava comportamentos que
surgiam nas sociedades capitalistas e atingiam principalmente as
classes privilegiadas. O tipo de suicídio, por ele definido como
anômico, caracteriza um modo de vida sem limites dos ricos e
poderosos.
E porque alguém rico se suicidaria? Não tem tudo que
precisa? Não pode sonhar com os céus, demandar as melhores coisas
que o mundo disponibiliza? Os estudos de Durkheim apontaram que são
exatamente estes sentimentos as forças motrizes desse tipo de
suicídio. Neste caso, o indivíduo não tem freio para as suas
paixões. Está sempre insatisfeito, querendo mais, querendo um novo
produto, tendo uma nova demanda a cada dia; e quando obtém o objeto
dos seus sonhos percebe que não foi suficiente, seu desejo agora é
algo além, a felicidade está em algo que seja absolutamente
perfeito. Não existe o satisfatório e, portanto, está sempre
insatisfeito:
"Mas
então suas próprias exigências tornam impossível satisfazê-las.
As ambições superexcitadas vão sempre além dos resultados
obtidos, sejam eles quais forem, pois elas não são advertidas de
que não devem avançar mais. Nada as contenta, portanto, e toda essa
agitação alimenta a si mesma, perpetuamente, sem conseguir
saciar-se. "(DURKHEIM, 1999, pg.322).
E
as consequências dessa busca sem fim pelo absoluto, pelo perfeito,
acabam desgastando qualquer um, assim como o atleta se cansa na
maratona, o rico se cansa na busca interminável por dinheiro e pelo
consumo ideal:
"O
que lhe permitia não enxergar a si mesmo era o fato de sempre contar
com encontrar mais adiante a felicidade que ainda não encontrara até
então. Mas eis que foi detido em sua caminhada; não tem mais nada,
nem atrás nem à frente, em que repousar o olhar. O cansaço, aliás
é suficiente por si só para produzir o desencanto, pois é difícil
não sentir, com o tempo, a inutilidade de uma perseguição
interminável." (DURKHEIM, 1999, pg. 326)
Por
sua vez, a psicologia e a economia têm também questionado a
eficiência do excesso de liberdade de escolha para o bem-estar. O
pressuposto da economia clássica é que somos seres racionais e
livres. O mercado, por sua vez, ofertaria os bens que a sociedade
almeja e neste processo o consumidor manifestaria seu interesse na
mercadoria através do preço. Dessa forma, uma maior diversidade de
escolhas tenderia a representar maior satisfação ao indivíduo, já
que ele pode buscar de maneira mais precisa aquele produto que melhor
se encaixa aos seus desejos.
Schwartz
(2004) cita e explica uma série de problemas advindos com o
gigantesco mercado de bens de consumo e uma diversidade infinita de
opções, que colocariam os indivíduos em constantes dilemas, seja
para escolher a melhor bolacha, ou até mesmo um plano de telefonia
ou previdência. Para ele, o acréscimo de opções nas compras
acarreta:
1-
Um esforço maior de decisão.
2-
Torna os equívocos mais prováveis.
3-
Agrava as conseqüências psicológicas de equívocos.
Dessa
forma, Schwartz (2004) considera que muitos americanos, mesmo estando
mais ricos, estão mais infelizes. E o principal problema apontado
por ele estaria no que ele chama de indivíduos maximizadores. Estes
seriam pessoas que sempre buscam a escolha perfeita, e relacionando
com a discussão proposta, seriam aquelas pessoas que tentam chegar
ao ápice da curva de utilidade marginal, ou no mais elevado grau do
citado “utilitômetro”. Estas pessoas acabam por nunca ficarem
satisfeitas, já que uma escolha melhor poderia ter sido feita em
algum lugar que elas deixaram de visitar. Para cada escolha feita
existe uma infinidade de escolhas não feitas. Assim, os
maximizadores são mais ansiosos nas decisões, mais propensos a se
arrependerem de suas decisões, mais propensos a exagerar no
raciocínio contrafactual (ficar pensando em como algo deveria ter
sido) e mais propensos à apatia imobilista (não fazer nada por medo
de arrependimento). E com tudo isso, como poderiam ser mais felizes?
A
própria economia fornece elementos para explicar esta perda de
bem-estar advinda do consumismo maximizador. Krugman (1997) explica
que não seria racional ser o máximo possível racional, pois ser
perfeitamente racional implica em custos (psicológicos, de tempo, de
pesquisa) inviáveis para o ser humano. Melhor dizendo, o tempo gasto
e o custo emocional envolvido em horas a mais para ficar escolhendo
um superinvestimento para suas economias ou a pizza perfeita para o
fim de semana são um desgaste muito maior do que o acréscimo mínimo
que a escolha supostamente perfeita representaria. Assim,
economicamente falando, é irracional ser perfeitamente racional.
Estas
idéias podem ser um alento positivo, principalmente para a questão
do consumo altamente elevado nas sociedades capitalistas avançadas,
onde se poderia lutar para uma revisão dos padrões elevados de bens
de consumo, ou talvez, um padrão em favor dos países mais pobres,
ou até mesmo de um padrão de consumo mais sustentável, voltado
para serviços, para práticas mais ecológicas, para a produção de
bens não descartáveis, etc... Contudo, várias características
presentes nestas sociedades dificultam ou inviabilizam estas
esperanças.
Shapiro
(2006) demonstra que a regra da utilidade marginal decrescente pode
levar os ricos a querer muito mais para obter o mesmo nível de
satisfação, contrariando as expectativas redistributivistas, uma
vez que para o rico garantir um acréscimo ínfimo de bem-estar
precisará de muito mais dinheiro. A situação seria similar aos dos
viciados em crack, em que cada vez é necessária uma dose maior para
manter o “barato”.
Schwartz
(2004) considera que o impacto de uma perda é maior do que o de um
ganho. A curva da “desutilidade marginal decrescente das perdas”
seria mais acentuada no seu início do que a da utilidade marginal.
Assim, as pessoas teriam aversão à perda, mesmo que estas perdas
sejam pequenas ou insignificantes. Um exemplo desse tipo de
comportamento é quando alguém compra um ingresso para um jogo de
futebol, mas, às vésperas do jogo, começa a chover e a pessoa se
sente incomodada de ir ao jogo. Ainda assim, muita gente acaba indo
ao certame, mesmo que o custo do ingresso já seja irrecuperável
ficando em casa ou indo. Pois, afinal, na cabeça da maioria ficar em
casa é que significa perder o dinheiro do ingresso – e as pessoas
detestam perder -, então elas se arrastam para o estádio.
Penna
(1999) por sua vez demonstra como a ideologia do conforto está
altamente consolidada na sociedade moderna. A busca por este espaço
de conforto levaria a um nível de competição similar às
características de neurose.
Assim, as pessoas teriam medo de perder,
tanto por este fato representar uma perda de bem-estar (em termos
utilitaristas), como também por representar uma perda relativa
frente à sociedade. Não basta ter muito, é preciso também estar à
frente dos seus pares.
"Uma
ameaça à estabilidade da sociedade moderna é a gerada pela ambição
de ascender na escala hierárquica social- ou simplesmente a ambição
de poder-, combinada a uma cobiça material fora de medida, com
características neuróticas. Isso gera um perigoso círculo vicioso:
mais poder (ou prestígio social), maiores necessidade de poder, da
mesma forma que a quantidade de objetos colecionados incrementa a
necessidade de se aumentar ainda mais a coleção." (PENNA,
1999, p.39)
E
nossas recentes eleições presidenciais parecem confirmar essa inevitabilidade da competição e da neurose. Podemos observar que boa parte dos setores abastados da
sociedade, os quais continuam viajando uma ou duas vezes por ano ao
exterior, consumindo mais ou menos a mesma cesta de bens, ou seja,
sem qualquer alteração relevante no seu montante material, ainda assim entraram num quadro de total paranoia e medo frente às
mudanças relativas na estrutura social observadas nos últimos 12
anos. Arrisco
a dizer que o motivo do
pânico é ver seu filho estudando com o filho da empregada, é a
perda na comparação que
efetivamente lhes causam sofrimento,
o que permite que acreditem com convicção em qualquer formulação
estapafúrdia de bolivarianismo ou comunismo batendo às portas. O
medo se torna então o seu guia e mobilizador, onde
qualquer mudança é violentamente rechaçada. Um
quadro lamentável e de difícil reversão.
E
o mais triste é saber que tal nível de ódio vai ainda causar
muitos danos sociais e no pior dos casos, podem tentar reverter o
bem-estar de milhões, para que no final das contas apenas uma
minoria tenha um relativo conforto psciológico de não ter que
compartilhar aeroportos com pobres. Obviamente, como visto aqui, são
confortos passageiros e ilusórios, não constituindo em efetivo
bem-estar. Portanto,
as ideias destes autores ajudam a elucidar o porquê de as pessoas
quererem consumir e acumular cada vez mais. Na verdade, ao não
compreenderem essa dinâmica e apostarem no quanto mais melhor,
acabam subtraindo pontos do próprio bem-estar, podendo evoluir para
quadros de instabilidades emocionais diversas. No final das
contas essa lógica é incompatível com o bem-estar e a
satisfação, pois o ser se torna prisioneiro de uma busca eterna e
frustrante pelo insaciável. Ademais,
essas questões nos
dão pistas para entender o
porquê das pessoas mudarem tão rapidamente de celulares, carros,
TV’s e outros tantos bens. A descartabilidade dos produtos no mundo
atual é tanto uma estratégia industrial, mas também
uma
necessidade psicológica. Mas aí já é tema para outra discussão...
BENTHAM,
Jeremy. Uma
introdução aos princípios da moral e da Legislação.
2ed. São Paulo: Abril Cultural. Traduções de João Marcos Coelho,
Pablo Rubén Mariconda. 1979. Original de 1789.
DURKHEIM,
Émile. O
suicídio:
Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes. Tradução Mônica
Stahel. 2000. Original de 1897.
MONTAIGNE,
Michel de. Os ensaios: livro I. 2ed. São Paulo: Martins Fontes.
Tradução Rosemary Costhek Abílio. 2002. Título original: Les
essais. Edição conforme com o texto do exemplar de Bordeaux com os
acréscimos da edição póstuma, explicação dos termos arcaicos,
tradução das citações, um estudo sobre Montaigne -/ por Pierre
Villey sob direção e com prefácio de V.l Saulnier.
PENNA,
Carlos Gabaglia.
O estado do planeta:
Sociedade de consumo e degradação ambiental. Rio de Janeiro, 1999.
251p.
SCHWARTZ,
Barry. O
paradoxo da escolha:
porque mais é menos. São Paulo, 2004. 301p.
SHAPIRO,
Ian. Os
fundamentos morais da política.
São Paulo, 2006. 327p.
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